ÉPOCA passou o fim de semana de Finados num campo de treinamento dos Black Blocs, em São Paulo. O que viu lá ajuda a saber quem eles são, o que pensam, o que querem, como se organizam e quem os financia
LEONEL ROCHA
15/11/2013 07h00
Um sítio a 50 quilômetros de São Paulo abriga um centro de treinamentos para a minoria que adotou o quebra-quebra como forma de manifestação política e ficou conhecida como Black Bloc. Dois homens na faixa dos 40 anos vigiavam o portão, fechado com corrente e cadeado. Se não fosse por eles, um observador menos atento poderia acreditar que o local, carente de manutenção, está abandonado. Não tem animais, horta nem pomar. Não tem trator nem enxadas. É usado somente nos finais de semana, como espaço para reuniões e ensino de técnicas de resistência à polícia. Apenas uma das três casas erguidas há 50 anos está em condições de uso. As outras duas não têm água nem luz. Servem de depósito. No primeiro final de semana de novembro, quando se comemorou o Dia de Finados, pouco mais de 30 pessoas se reuniram nesse sítio para organizar uma nova onda de protestos contra tudo e contra todos – a presidente Dilma Rousseff, políticos em geral, bancos, empresas de transporte, telefonia e comunicação.
Fui admitido no encontro como repórter de ÉPOCA. O que vi ajuda a compreender quem são, o que querem e o que pensam os Black Blocs. Mais: desmente a concepção vigente entre órgãos de segurança federais e estaduais. É voz corrente que eles não têm organização e aparecem nas manifestações como que por geração espontânea. Ao contrário, eles têm método, objetivos, um programa de atuação e acesso a financiamento de entidades estrangeiras.
Foram necessárias três semanas de negociação até que os ativistas me abrissem seus portões e me permitissem testemunhar seus treinamentos, debates e decisões. Antes, apresentaram exigências e cobraram garantias. Para ter acesso ao encontro, tive de me comprometer a não revelar a localização do sítio, só identificar na reportagem os ativistas que se dispusessem a declarar seus nomes e profissões e a tratar a todos com respeito. Em nenhum momento soube o endereço do sítio. Marcamos um encontro no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), onde os Black Blocs se reúnem em dias de manifestação na capital paulista. De lá, segui com dois guias até o sítio numa Kombi. Uma parte do caminho foi feita em estrada de terra.
As primeiras horas foram para superar desconfianças. No começo, fui chamado de “senhor”. Rompi parte das resistências com a ajuda de um antigo sindicalista. Ex-funcionário da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), o jornalista Leonardo Morelli coordena a ONG Defensoria Social, um braço visível e oficial que os apoia. Morelli me recebeu no sítio porque acredita que os “blockers” precisam de visibilidade e reconhecimento dos meios de comunicação. Só por meio deles, diz ele, podem superar a rejeição de quase toda a sociedade, que condena o quebra-quebra característico das aparições dos Black Blocs. O termo, segundo eles, designa uma forma de atuação, não um grupo ou movimento organizado.
Aos 53 anos, Morelli é o mais velho do grupo. Participou de pastorais católicas de direitos humanos. Integrou o grupo que originou a Comissão Pastoral Operária. Militou com petistas como Luiz Gushiken (1950-2013), ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, e o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh. Seu nome aparece em quatro relatórios dos órgãos oficiais de espionagem. Datado de 1987, um documento do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) relaciona Morelli entre punks e anarco-sindicalistas. Segundo o texto, Morelli propunha “furar os pneus e quebrar os vidros dos ônibus” para parar São Paulo e provocar uma greve geral dos trabalhadores. “Eu já era Black Bloc nos anos 1980, antes de existir o movimento com esse nome”, diz.
Ele foi demitido da RFFSA por participar de uma greve nos anos 1980. No fim da década, foi anistiado e aposentado. Agora, tenta influenciar os Black Blocs com novas causas. Ergue bandeiras ambientais, denuncia os lixões e a contaminação de áreas da periferia. Defende a desmilitarização das polícias, a liberação de biografias não autorizadas, o controle social das pesquisas científicas, combate o Marco Civil da Internet e cobra as renúncias dos governadores de São Paulo, Geraldo Alckmin, e do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.
Os ativistas reunidos no interior paulista compartilham o credo anarquista de Morelli, mesmo com pouca informação sobre o tema. O mais jovem do grupo, com 17 anos, é um típico punk da periferia paulista, de cabelo moicano. Tenta concluir o ensino médio. Num dos últimos conflitos, foi fotografado quebrando a pontapés uma vidraça de uma agência bancária. Distribuída por agências de notícia estrangeiras, a imagem rodou o mundo.
Pouco mais velho que ele, um rapaz de óculos diz ter lido textos anarquistas na internet e não compreender como todos de sua idade não aderiram ao movimento. Morador da periferia paulistana, conta que cresceu assistindo a amigos e vizinhos apanharem da polícia. Nunca votou e afirma que jamais escolheria os candidatos preferidos por seus pais na eleição presidencial de 2010 – Dilma Rousseff e José Serra. Na noite de 26 de outubro, testemunhou o espancamento do comandante da Polícia Militar de São Paulo, coronel Reynaldo Rossi. Relata que Rossi fora “marcado” pelos “blockers”. A ordem era bater nele sem acertar a cabeça, para evitar o risco de morte. “Vi muito amigo ser espancado pela polícia lá no meu bairro. É assim que vamos responder daqui para a frente”, diz o Black Bloc com pinta de nerd.
O grupo comprou a Kombi que me conduziu e um Jeep Willys com dinheiro que recebeu de entidades nacionais e estrangeiras. Segundo Morelli, desde o início deste ano, já ingressaram nos cofres da Defensoria Social E 100 mil. Ele afirma que o dinheiro foi repassado pelo Instituto St Quasar, uma ONG ligada a causas ambientais. Morelli também cita entre seus doadores organizações como as suíças La Maison des Associations Socio-Politiques, sediada em Genebra, e Les Idées, entidade ligada ao deputado verde Jean Rossiaud. Procurados por ÉPOCA, ambos negaram ter enviado dinheiro. Morelli diz que a Defensoria Social também foi abastecida pelo Fundo Nacional de Solidariedade, da CNBB. A CNBB também negou os repasses. Morelli ainda relacionou entre seus contatos os padres católicos Combonianos e a Central Operária Boliviana.
O dinheiro financia os treinamentos dos militantes, como o ocorrido no fim de semana de Finados e outro realizado em julho na cidade de Cáceres, em Mato Grosso. Nessas ocasiões, os ativistas são informados de que a precondição para ser Black Bloc é ter disposição para enfrentar a polícia. Em Cáceres, aprenderam a se proteger das balas de borracha com escudos feitos com tapumes. Foram orientados a formar paredes com os escudos para se defender em bloco, como as tropas de choque fazem hoje – e, no passado, fizeram as falanges gregas e legiões romanas. Em Cáceres, havia rapazes que prestaram serviço militar.
Ex-recrutas do Exército, eles ensinaram aos colegas Black Blocs o que aprenderam na caserna. Em Cáceres e no interior paulista, os ativistas tiveram aulas com o ex-militante do MST Paulo Matos. Aos 36 anos, ele acumula 21 anos de militância. Participou de cinco invasões, foi preso, processado e ajudou a organizar o assentamento mato-grossense Antônio Conselheiro, o maior do país. Deixou o MST quando passou a acreditar que alguns de seus companheiros eram corruptos. Conta que, ameaçado por eles, fugiu para a Bolívia, onde começou a estudar medicina. Diz que trabalhou como enfermeiro e aprendeu a fazer pequenas cirurgias. Carrega um kit com bisturi, agulha de sutura, pinça, tesoura e luvas para socorrer quem se fere no combate das ruas. “Somos gladiadores sociais”, afirma Paulo Matos.
Nos debates, o clima é de indignação, revolta e impaciência com as promessas dos governantes. No sítio paulista, foram exibidos vídeos de protesto para os ativistas. Fez sucesso Setembro negro: Estado, violência e reação, produzido pela carioca 202 Filmes. Os ativistas também assistiram a um vídeo gravado durante o treinamento de Cáceres. Produzido pela desconhecida Aliança Latino-Americana de Ação Direta, ele pode ser acessado pelo site da ONG Usina Brasil e ensina a manusear pistolas. Não vi armas de fogo ou de qualquer outro tipo no sítio do interior paulista onde os Black Blocs se reuniram no Dia de Finados. Havia lá apenas facões e um pequeno machado. O máximo a que assisti foi uma discussão sobre se deveriam ou não fazer atentados contra prédios públicos, inclusive com o uso de dinamite. Essa hipótese foi aventada por uma minoria exaltada, que cogitava incendiar carros durante as manifestações.
O encontro de Black Blocs no sítio paulista foi marcado pela improvisação. Na única casa habitável, o telhado exige reforma, e as paredes clamam por pintura. Um gerador a gasolina forneceu energia apenas por algumas horas. A mesa comprida da sala serviu mais para discussão do que para refeição. Os Black Blocs não se reuniram para comer. Ao fazê-lo, não se preocuparam com etiqueta. Saborearam churrasco de carne de segunda e embutidos. Arroz e macarrão foram preparados num fogão de quatro bocas. Para o café da manhã ou para a noite, reservaram biscoitos, café e leite. Banho, só com água de poço, fria. Para beber, levaram garrafas de água mineral. O dinheiro para as compras foi racionado – sempre é. Dispunham de uma geladeira e um micro-ondas. Acesso a celular ou internet, só por milagre. Os maços de cigarro foram compartilhados. Tarefas como faxina ou cozinha foram divididas por habilidades ou disposição, na base do voluntarismo. Como havia poucas camas, muitos dormiram no chão. Só vi duas mulheres. Ambas dormiram no sítio. Uma fogueira na área externa espantou o frio.
Os Black Blocs disseram que o desconforto não era maior que em suas próprias casas. Muitos vieram de fora de São Paulo. Havia gente do Rio de Janeiro, do Paraná, de Mato Grosso, de Minas Gerais, de Pernambuco e do Amazonas. Costumam adotar apelidos como Marmota, Irmão ou Jow, para não ser identificados pelas autoridades. Piercings e tatuagens são quase regra. Os que têm telefone celular mudam o número com frequência. Dois militantes foram incumbidos de vigiar a área durante o dia. Se alguém se aventurar a pular a cerca, pode ser surpreendido por armadilhas feitas com pontas de madeira. Só entrou no sítio quem integra o grupo e eu, que fui convidado. Os ativistas de Pernambuco e do Rio não permitiram que eu assistisse a uma das reuniões. Por isso, dormi em São Paulo e voltei no dia seguinte.
Nos cartazes pendurados na casa habitável, só havia espaço para teses anarquistas e ambientalistas. Anticapitalistas, os Black Blocs defendem uma genérica “solidariedade humana”. A formação intelectual da maioria é quase primitiva. Definem-se como anarquistas porque são, genericamente, contra a repressão do Estado, para eles encarnada pela polícia. A nata do anarquismo é muito citada, mas pouco lida. Nos debates, ouvi os nomes dos revolucionários Mikhail Bakunin (teórico anarquista) e Pierre-Joseph Proudhon (político francês que comparava a propriedade a um roubo), do escritor russo Liev Tolstói, do ucraniano Nestor Makhno (anarquista durante a Revolução Russa) e de François Claudius Koenigstein (conhecido como Ravachol, teórico do terrorismo). Como anarquistas, dizem não ter líderes. As teses e ações do grupo são decididas por consenso ou adesão. Dizem que são ativistas. “Manifestante é pacífico. O que fazemos é protesto”, afirma Leonardo Morelli.
Ninguém é considerado traidor se não entrar no quebra-quebra, mas o vandalismo é visto como ato de coragem. Equipamentos como orelhões são quebrados, segundo eles, porque a telefonia é dominada por estrangeiros. Também merecem condenação empreiteiras e multinacionais. Revoltados com a privatização do campo de Libra, incluíram a Petrobras no rol de suas potenciais vítimas. Dizem que queimam as lixeiras públicas nos protestos porque consideram corruptas as concessionárias do serviço. Alguns rejeitam programas sociais, como Bolsa Família, Mais Médicos e ProUni, pois, segundo eles, mascaram as péssimas condições da população e amortecem a revolta.
O discurso seduz gente como Daniela Ferraz, paulistana criada no complexo de favelas do Capão Redondo. Aos 31 anos, mãe de um filho que mora com o pai, ela cometeu dois assaltos e cumpriu cinco anos de prisão. “Tinha filho para criar e uma irmã criança para ajudar a criar. Não tive alternativa, e o desespero me levou a assaltar. Mas nunca me envolvi com homicídios”, diz. “Quando os corruptos poderosos roubam milhões, nada acontece. Quando o pobre assalta para comprar comida e fraldas para o filho, vai preso.” Ainda cumprindo pena em liberdade, Daniela armou-se de paus e pedras para atacar agências bancárias. Agora, é conhecida como Dani, a Pantera dos Black Blocs.
No fim de semana de Finados, os 30 Black Blocs tomaram decisões importantes. Acertaram protestar contra todos os candidatos que disputarem a próxima eleição. Nenhum deles terá seu apoio. Interlocutor do governo federal com os movimentos sociais, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, reclamou da falta de interlocução. Os ativistas decidiram, então, resolver o problema enviando uma carta a Gilberto Carvalho. O documento lista, entre outras reivindicações, a desmilitarização das polícias, anistia aos Black Blocs presos, infraestrutura para assentamentos rurais e suspensão da privatização do campo de Libra. O texto foi levado de avião para o Planalto pelo ex-MST Paulo Matos. Ele invadira a Assembleia Legislativa do Rio em junho e quebrou janelas em São Paulo no 7 de setembro. Matos protocolou o texto no Palácio do Planalto na última terça-feira. Na mochila, levava também a máscara de Black Bloc. O grupo decidiu fazer uma nova onda de protestos nos próximos dias, caso não seja atendido. Deixou endereço e telefone, para a eventualidade de Carvalho se decidir a negociar com eles. Procurado por ÉPOCA, Carvalho confirmou ter recebido o documento.
Os Black Blocs me receberam em seu refúgio. Concederam entrevistas, mas não permitiram filmagens nem o uso de câmeras profissionais. Morelli e Matos aceitaram que eu os fotografasse no sítio com o celular. Escolheram um cenário neutro, de forma a evitar a identificação do local. A meu pedido, fizeram outras imagens após o encontro do fim de semana, para ilustrar esta reportagem. Quem foi ao encontro de Finados ganhou um par de CDs. Eles contêm programas para sabotar redes de computadores de órgãos públicos e empresas privadas. Desenvolvidos por programadores vinculados à célula carioca do grupo hacker Anonymous, esses programas já circulam na internet.
Os Black Blocs brasileiros seguem uma onda mundial. São uma manifestação tardia de um fenômeno que tem origem na Alemanha dos anos 1980 e, gradualmente, começou a aparecer nas manifestações de ruas pelo mundo. Primeiro, nos protestos antiglobalização dos anos 1990. Depois, como parte das mobilizações que se seguiram à crise econômica de 2008. Agora, quebram vitrines e enfrentam a polícia no Brasil. O cientista político canadense e ativista Francis Dupuis-Déri, da Universidade de Québec, afirma que os Black Blocs são mais uma tática que um movimento político, mais uma demonstração de rua que uma ideologia. Envolveram-se em protestos no Canadá, na Grécia, na Espanha e no Egito. “Estão se convertendo num fenômeno global, como a crise econômica”, diz Dupuis-Déri, autor de Who’s afraid of the Black Blocs? Anarchy in action around the world (Quem tem medo dos Black Blocs? Anarquia em ação através do mundo), livro que sairá nos Estados Unidos pela editora Between the Lines. Em toda parte, os Black Blocs são acusados de promover quebra-quebras e espantar das ruas os demais manifestantes. Como uma das missões dos Estados democráticos é combater a violência e preservar a ordem, os Black Blocs frequentemente acabam na cadeia pelos crimes que cometem durante as depredações. Em dez anos, 10 mil foram presos, a maioria em protestos antiglobalização. A cadeia pune a violência e pode coibi-la, mas não ajuda a compreender o que eles querem, quem são, o que pensam, como se organizam – e, principalmente, quem os financia. “Qualquer um no Brasil que deseje entender o que querem os Black Blocs deveria tentar escutá-los”, diz Dupuis-Déri. É o que ÉPOCA faz nesta reportagem
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