Cristina Bordé passou 19 anos
tentando provar inocência de agricultor mexicano condenado à morte nos EUA por
estupro e assassinato de bebê de 21 meses após depoimentos de médicos que não
sabiam de detalhe importante.
Por
BBC
Cristina Bordé e Vicente Benavides, pouco antes do momento em que ele
deixou a cadeia — Foto: Arquivo pessoal (via BBC)
Quando viu os guardas da emblemática Penitenciária Estadual de San
Quentin (Califórnia) liberando seu cliente, a advogada Cristina Bordé começou a
chorar.
Nesse dia 19 de abril de 2018 ela conseguiu a libertação de Vicente
Benavides, um agricultor mexicano que, em 1993, foi condenado à pena de morte,
acusado de estuprar e matar uma menina de 21 meses.
Foi o dia em que Bordé, que tem cidadania colombiana e americana,
conseguiu o que considera a maior vitória de sua vida: salvar uma vida.
"Foi um momento extraordinário, que ocorre muito poucas vezes.
Quase não consigo achar palavras", diz a advogada, que conversou com a BBC
Mundo sobre como conseguiu a libertação de um homem que passou 26 anos preso
injustamente.
Bogotá, Harvard, San Quentin
Bordé estudou direito nos Estados Unidos, mas fez os estudos escolares
em Bogotá, capital da Colômbia.
"Desde pequena queria ser advogada e ajudar, mas não imaginei que
terminaria cuidando de um caso de pena de morte", diz ela.
Recém-formada na Universidade de Harvard, a advogada se mudou para a
Califórnia e começou a trabalhar numa entidade estatal que atendia pessoas
condenadas à morte. Seu primeiro caso foi o do agricultor mexicano Vicente
Benavides.
Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde Cristina Bordé estudou
direito. — Foto: Harvard University/Divulgação
"Comecei em 1999 com uma equipe e começamos a revisar as
provas", diz ela.
A sentença havia sido passada seis anos antes, mas, por causa de
trâmites burocráticos, essa era a primeira vez que Benavides teria acesso a um
advogado para apelar contra sua condenação.
O mexicano insistiu desde o início que era inocente e foi a primeira
coisa que disse a Cristina quando a conheceu.
"Não fiz nada com a menina", disse o mexicano à advogada, e
ela decidiu acreditar.
O caso Benavides
O episódio pelo que Vicente Benavides foi condenado ocorreu em novembro
de 1991, quando ele tinha 42 anos, na cidade de Delano, na Califórnia.
O fazendeiro estava cuidando da filha de sua namorada à época, que havia
ido trabalhar.
Depois de descobrir que a menor tinha conseguido sair do apartamento,
encontrou-a muito mal, do lado de fora do prédio onde viviam.
Depois de passar por vários hospitais durante oito dias, seu quadro
clínico foi piorando e a pequena morreu de um ataque cardíaco.
A essa altura, o mexicano já estava preso.
Os informes médicos diziam que haviam sido detectadas feridas na região
genital e golpes na cabeça e no abdômen, elementos usados para acusar Benavides
de estupro e assassinato.
19 anos de litígio
O julgamento do mexicano começou dia 15 de março de 1993 e terminou em
20 de abril do mesmo ano com a condenação à pena capital em San Quentin, a
única prisão da Califórnia que executa pena de morte.
A justiça levou menos de um mês e meio para condená-lo.
"Ele não tinha histórico de violência nem abuso sexual",
enfatizou a advogada. "Quando começamos a avaliar as evidências médicas,
ficou muito claro que havia sido cometida uma grande injustiça."
O primeiro passo para iniciar a defesa de Benavides foi pedir um habeas
corpus. Para isso fizeram uma minuciosa revisão das provas que levaram
à condenação.
Descobriram que, no primeiro boletim médico, não foi detectada nenhuma
ferida na área genital, como se elas tivessem surgido depois.
"No primeiro hospital tentaram botar um cateter para tirar sua
temperatura. Os especialistas com quem falamos disseram que as feridas
encontradas na genital foram resultado disso", diz Bordé.
A partir daí, pediram que especialistas analisassem as provas e os
testemunhos dados ao júri. "Todos os que consultávamos diziam que a causa
da morte indicada pelo patologista que participou do julgamento era
anatomicamente impossível. Ele disse coisas completamente falsas", diz
ela.
O patologista declarou que a bebê havia morrido em consequência dos
ferimentos anais, e outros médicos testemunharam que os ferimentos teriam sido
causados por violência sexual.
Maurice Possley, pesquisador de uma organização americana que acompanhou
o caso, diz que a equipe da advogada se baseou no argumento de que a condenação
havia sido feita com base em testemunhos médicos falsos, que a polícia e a
promotoria haviam omitido evidências e que os promotores haviam apresentado
argumentos incorretos.
Quase todos os médicos que testemunharam no julgamento voltaram atrás e
se retrataram, dizendo não terem visto os boletins médicos completos que
indicavam que não havia evidências de abuso sexual quando a bebê foi examinada
no primeiro hospital.
Eles disseram reconhecer que seus ferimentos genitais podem ter sido
causados durante o tratamento médico.
Bordé e sua equipe apresentaram em 2007 um documento de 395 páginas para
tentar provar a inocência do cliente.
E foi esse documento que acabou sendo chave para que um juiz da Suprema
Corte da Califórnia decidisse absolver o fazendeiro mexicano em 2018 e
determinar sua libertação.
26 anos de prisão sem culpa
San Quentin (na foto) é a única prisão da Califórnia que executa pena de
morte — Foto: Stephen Lam/Reuters
Vicente Benavides passou um ano e meio preso antes de ser condenado,
esperou mais cinco anos até que a justiça lhe atribuísse um advogado com quem
pudesse apelar a sentença e levou 26 anos até recuperar sua liberdade, aos 68
anos.
"Isso é típico para pessoas que não têm dinheiro. Os tribunais têm
muitos casos que carecem de provas", diz Bordé.
A colombiana sabia das dificuldades em defender Benavides e conseguir a
absolvição de um condenado à pena de morte.
Entre 1979 e 2019, apenas quatro condenados à pena de morte foram
absolvidos e liberados na Califórnia. Antes do agricultor, o último caso havia
sido no ano 2000.
Desde 1967 até hoje houve 122 absolvições de pessoas condenadas à mortes
nos Estados Unidos.
O mais recente foi Benavides, que agora vive em algum povoado do México
acompanhado de sua família e amigos.
Em vez de dar entrevistas, ele prefere contar sua história e
"recuperar o tempo perdido".