Praticar modifica o cérebro.
Motivação, foco, atenção e anos de prática lapidam talentos.
Este é o segundo episódio da série especial "Cérebro, máquina de
aprender". Durante toda a semana, o Jornal da Globo mostrará que a
aplicação da neurociência, a ciência que estuda o cérebro, é capaz de
resultados excepcionais na vida das pessoas.
Ana Botafogo e Thiago Soares, dois ícones do balé clássico. Joe
Satriani, John Petrucci e Steve Morse, três gênios da guitarra. Além de
serem excepcionais no que fazem, o que mais eles têm em comum?
Muita coisa: motivação, foco, atenção e anos e mais anos de prática. Os
três guitarristas começaram a tocar ainda muito jovens, por volta de
11, 12 anos de idade, e estudam até hoje. “É um instrumento que você
pode estudar a vida inteira, e ainda assim vai encontrar desafios”,
afirma Steve Morse, guitarrista do Deep Purple.
A mais famosa primeira bailarina brasileira dança desde criança. “São
muitas horas de exercício, são exercícios a vida toda”, afirma Ana. O
primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres começou um pouco mais
tarde, já adolescente, mas treina muito, todos os dias da semana. “Umas
seis horas e meia a oito horas por dia, fora os espetáculos”, diz
Thiago.
Tanta dedicação assim explica, em parte, o sucesso deles. “A princípio,
qualquer pessoa pode se tornar excelente, extraordinária no que ela
faz, desde que ela tenha um interesse extraordinário pelo que ela faz, e
a oportunidade de praticar a um nível extraordinário também com aquilo.
É suor mesmo”, diz Suzana Herculano-Houzel, neurocientista da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Praticar modifica o cérebro. Para percorrer uma mata, você tem que
construir uma série de trilhas. Depois de algum tempo, você percebe que
só vai explorar algumas trilhas e elas se tornam mais largas, viram
quase estradas.
As que você não percorre vão desaparecendo e, depois de um tempo, a sua
mata está assim. É exatamente o que acontece no nosso cérebro. Quanto
mais praticamos, mais fortalecemos o caminho que o nosso cérebro faz
para executar uma determinada tarefa. Assim ficará mais fácil achar essa
trilha da próxima vez.
Há períodos na vida em que ocorrem mudanças no cérebro com mais
intensidade. São as chamadas janelas de oportunidade. A maior delas
acontece quando deixamos de engatinhar e começamos a andar.
“A criança, até os dez meses de idade, é quadrúpede. Vai engatinhando, e
tem um cérebro que funciona que nem o do cachorro ou de qualquer animal
quadrúpede. Olhar como um quadrúpede olharia. Quando a criança começa a
ficar em pé, descobre um mundo novo”, afirma o neurocientista Ivan
Izquierdo, da PUC/RS.
"Aí nascem novos neurônios, ou crescem conexões entre neurônios da vida
bípede e morrem diretamente os neurônios que ele carregava da vida
quadrúpede. Depois nunca mais na vida teremos uma perda tão gigantesca
como essa”, afirma Izquierdo.
“A aprendizagem é toda mais fácil quando é feita de criança. Quanto
mais cedo ela puder aprender, melhor”, diz Paulo Ronca, doutor em
Psicologia Educacional da Unicamp. É possível começar a criar memórias
de longa duração desde pequeno.
Esse é o objetivo da escola municipal de Guarani, uma cidade mineira de
apenas 9 mil habitantes. Os professores usam fundamentos da
neurociência, a ciência que estuda o cérebro, para preparar os alunos
para a alfabetização.
Quem trouxe a neurociência para algumas escolas de Minas Gerais foi a
professora Elvira Souza Lima, coordenadora do projeto Escrita para
Todos. “A criança, nesse período, que é o período do faz de conta, ela
cria, mas tem que ser um criar sem avaliação. Então, para a criança que
canta todo dia, desenha todo dia, escrever todo dia vai ser
absolutamente uma consequência natural”, diz.
Lá, nada é forçado. A ideia é que o aprendizado seja natural, sem
imposições, sem críticas. Muito pelo contrário: segundo a neurociência,
elogiar é fundamental. “Elogiar é uma motivação extraordinária. Eu acho
que precisa ser mais usada, em escolas, em casa”, diz Herculano-Houzel.
“É isso que nós queremos: que nosso aluno tenha, aqui na escola, uma
emoção positiva para que ele guarde aquilo na memória e possa usar lá na
frente”, afirma Eliana Alvim, supervisora da escola de Guarani.
Não são só emoções positivas que a gente guarda na memória.
Acontecimentos negativos também podem ficar para sempre na nossa cabeça.
Quem não se lembra onde estava no dia 11 de setembro de 2001? “Todo
mundo se lembra onde estava, com quem falou, que horas eram. Foi um
momento emocionalmente muito forte, muito intenso. Então, isso grava
melhor”, afirma Izquierdo.
Gravamos até quando não fazemos, até quando não estamos executando a
ação. Neurocientistas afirmam: imaginar é quase praticar. “Se eu pedir a
você que se imagine andando de bicicleta, é capaz de imaginar-se
andando de bicicleta. Se você fizer isso, e eu puder registrar as suas
áreas cerebrais, o seu cérebro em funcionamento, as regiões que vão
estar ativas são muito parecidas, praticamente as mesmas, que estão
ativas quando você, de fato, está andando de bicicleta. Daí se pode
concluir que a imaginação é um treinamento.”, explica Robert Lent,
neurocientista da UFRJ.
Ana Botafogo e Thiago Soares sabem bem disso. “Tem coisas que eu não
quero me desgastar fisicamente porque eu já fiz muito. Então, faço na
memória, ou faço pensando, imaginando que eu estou fazendo. Às vezes, a
gente até fala, marcando”, diz Thiago.
Foi imaginando que o jogador de basquete Michael Jordan ganhou um dos
títulos dele na NBA, a liga profissional americana. “O mundo inteiro
esperava aquela jogada para ganhar o título. Como ele recebeu a bola, e
faltavam três segundos, o Michael Jordan ia tentar fazer a cesta. Só que
ele pensou anos antes, anos, que se ele tivesse em uma situação dessas,
ele ia passar a bola. Porque ia ter alguém sozinho, e foi exatamente o
que aconteceu. Três jogadores vieram nele, e tem um jogador que ninguém
mais lembra, que é o Carr, que pega a bola e faz a cesta”, diz Miguel
Nicolelis, chefe do departamento de Neurociência da Universidade Duke
(EUA).
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