A antecipação da
idade prevista para que as crianças brasileiras estejam plenamente
alfabetizadas em todas as escolas brasileiras, anunciada junto com a terceira
versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pelo Ministério da Educação
nesta quinta-feira (6), levantou um debate sobre como o Brasil deve formar seus
estudantes na primeira infância. Até a segunda versão da Base, a idade
considerada "certa" para a alfabetização plena era por volta dos oito
anos, durante o 3º ano do ensino fundamental. Na terceira versão, esse
cronograma foi antecipado para os sete anos, quando as crianças estão
matriculadas no 2º ano do fundamental.
A mudança vai
exigir mudanças em pelo menos 146 mil escolas públicas, onde estudam 7,5
milhões de alunos de 6 a 8 anos, além das pré-escolas, para alunos de 4 e 5
anos. Veja os principais pontos sobre o assunto:
·
A tendência de
antecipar a alfabetização começou nas escolas particulares depois de 2010,
quando o ensino fundamental passou de oito para nove anos de duração, e o antigo "pré" se tornou o 1º ano do
fundamental;
·
Desde 2013, as
escolas públicas brasileiras seguem o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic),
uma iniciativa para estimular que as crianças estejam plenamente alfabetizadas
aos 8 anos, no 3º do fundamental;
·
Mesmo assim, não
é isso o que acontece na realidade: dados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) de 2014 mostram
que um quinto dos alunos da rede pública chegou ao 4º ano do fundamental sem
aprender a ler adequadamente;
·
Além disso,
estudos indicam que o processo de alfabetização é longo e, para ser concluído
aos sete anos, precisa começar com as crianças mais novas, que ainda não estão
preparadas para isso;
·
Está em jogo,
segundo especialistas, o embate entre usar os anos do ensino infantil para
atividades lúdicas que estimulam os pequenos a reconhecerem sua identidade e se
interessarem em aprender sobre o mundo, ou para estimular o aprendizado
conteudista, visto por muitos adultos como sinônimo de sucesso profissional.
Questão de equidade
Em entrevista
exclusiva ao G1, na tarde de quinta-feira (6), a secretária
executiva do MEC, Maria Helena Guimarães de Casto, justificou a decisão citando que isso
já acontece nas escolas particulares, e afirmando que se trata de uma questão
de equidade e de uma tendência mundial. "Não faz sentido esperarmos até o
terceiro ano, quando a criança conclui com oito, às vezes com nove anos de
idade, para que ela esteja plenamente alfabetizada. Ou seja, se as crianças da
classe média, que frequentam escolas particulares, ou a criança que está em uma
escola pública muito boa (...), nós precisamos fazer que isso aconteça em todas
as escolas", afirmou ela (assista mais no vídeo abaixo, e confira aqui a
entrevista na íntegra):
Maria Helena Guimarães de Casto,
secretária executiva do MEC, defende a alfabetização até o segundo ano do
ensino fundamental (a partir do minuto 1'43'')
A partir de
2009, com a obrigatoriedade do ensino universal se estendendo para as crianças
a partir de quatro anos, a expectativa é de que o processo de alfabetização não
comece diretamente no primeiro ano escolar do aluno, e que haja um período de
adaptação antes dele. Especialistas em educação infantil, porém, ressaltam que
adequar as escolas públicas à tendência das escolas particulares pode afetar
negativamente o desenvolvimento e o amadurecimento das crianças. Segundo a
pesquisadora e professora Maria Carmen Silveira Barbosa, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a antecipação em um ano da alfabetização
plena não muda apenas os objetivos de aprendizagem do ensino fundamental, mas
também alterou os objetivos do ensino infantil.
Espaço para a imaginação
Segundo ela, que
participou da elaboração tanto da primeira quanto da segunda versão da Base
Nacional, entre os primeiros documentos e o que foi apresentado nesta
quinta-feira pelo MEC, há alterações importantes no que diz respeito aos
objetivos voltados principalmente às crianças de 4 a 5 anos. "A
centralidade da alfabetização está dada", explicou ela ao G1,
apontando que um dos quatro "campos de experiências" (as grandes
áreas da Base do ensino infantil nas quais os objetivos de aprendizagem foram
divididos) inclusive mudou de nome. Na segunda versão, segundo Carmen, o campo
foi chamado de 'Escuta, fala, pensamento e imaginação'. Já na terceira versão,
ele mudou de nome para 'Oralidade e escrita'.
"Ora, a
oralidade está presente em todos os campos, pois é uma das grandes pautas do
desenvolvimento infantil entre zero e cinco anos. Quanto à escrita, quando a
retiramos do contexto cultural, ela acaba virando código, letra, som. Acho que,
nesse caso, podemos falar de empobrecimento do campo de experiência",
disse a professora. "Gostaria também de comentar que a imaginação não é
algo inato nos seres humanos. Nós aprendemos a imaginar, assim como a brincar.
E somente imaginamos se convivemos com pessoas que imaginam ou em ambientes
onde a imaginação é aceita."
De acordo com
Carmen, muitos adultos tendem a acreditar que "a inteligência de uma
criança pode ser medida pela sua capacidade de ler e escrever cada vez mais
cedo, e que esta precocidade pode levá-la, em linha direta, ao êxito
profissional". Porém, diz a pesquisadora, isso não vale para todas as
pessoas.
"Podemos
oferecer um ambiente onde a cultura e a linguagem escrita estejam presentes, na
mesma medida em que outras linguagens, como a musical, que também lemos e
escrevemos, ou a do desenho, ou a das construções, e deixar que as crianças
possam fazer suas interlocuções, experiências, escolhas, cada uma no seu
próprio tempo. Segundo alguns pesquisadores, em torno dos seis ou sete anos,
elas certamente serão mais capazes de ler e escrever sem serem obrigadas a tal
atividades."
A professora
ressalta que as duas últimas versões da Base oferecem, de certa forma, duas
perspectivas distintas de como educar os pequenos. Por um lado, está a ideia de
privilegia a "dupla tarefa" das crianças de até cinco anos:
"conhecer o mundo e, ao mesmo tempo, constituir-se como pessoa". De
outro, está a perspectiva "da educação como, principalmente, a
instrumentalização das crianças em conteúdos científicos fragmentados, com
direção única, com respostas fechadas".
O Brasil tem 183.507 escolas de
ensino fundamental, segundo o Censo Escolar de 2015. Dessas, 80% são públicas
(Foto: Editoria de Arte/G1)
Possíveis consequências
A psicopedagoga
Cynthia Wood, especializada em psicoterapia da criança e adolescente e em
neuropsicologia, explica que é possível alfabetizar algumas crianças até os
sete anos de idade, mas nem todas se encaixam nessa situação. De acordo com
ela, a opção das escolas particulares em usar os dois primeiros anos do novo
ensino fundamental para a alfabetização provoca um "descompasso" e
não é o cenário ideal.
"As
crianças só estão 'neuropsicologicamente' formadas para a alfabetização aos
sete anos", explica ela. Já a criança de seis anos "ainda precisa da
educação infantil nessa fase para desenvolver a coordenação motora e as
habilidades sociais", afirma Cynthia. "Sendo assim, ela não consegue
se alfabetizar, justamente por não ter condições de aprender a ler e a
escrever."
Cynthia diz que
entre as consequências registradas pela antecipação da alfabetização está o
aumento de crianças de seis anos encaminhadas aos consultórios de
psicopedagogia, porque não conseguiam acompanhar a mudança. A questão demanda,
das escolas, atenção redobrada para reconhecer as dificuldades de aprendizagem
e corrigi-las antes que atrapalhem o resto do percurso escolar. "Se isso
[a alfabetização aos sete anos] não ocorrer, é preciso reter o aluno e buscar
solucionar a situação", diz a psicopedagoga.
Luciana Barros
de Almeida, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp),
reitera que, embora a fase de alfabetização infantil seja um ciclo que começa
aos seis anos e termina aos oito, seu "ápice" ocorre nos seis e sete
anos de idade. Porém, ela diz que "condições motoras e emocionais têm um
desenvolvimento gradual", e que as crianças podem apresentar diferenças
neste processo, o que exige o envolvimento de perto da equipe escolar e dos
pais.
"Apesar da
proposição de que a alfabetização ocorra até o 2º ano do ensino fundamental (7
anos), se uma criança não consegue inicialmente, isso não é um problema apenas
dela. Pelo contrário requer mais a dedicação dos adultos envolvidos (família,
professor, demais profissionais). Todo desenvolvimento requer envolvimento de
todos", disse Luciana.
A professora
Carmen Barbosa, da UFRGS, lembra que, durante o processo de universalização do
ensino na década de 90, "com a ampliação da presença das crianças de
classe popular na escola, apenas 60% delas saíam alfabetizadas aos sete anos,
as demais repetiam uma ou duas vezes a primeira série". Com a mudança, ela
afirma que a Base privilegia "uma educação fácil de reproduzir, barata e
possível de se avaliar em larga escala". Ter todas as crianças aprendendo
no mesmo ritmo, "fazendo provas e centrada, muitas vezes, apenas na língua
escrita", pode parecer um bom padrão, porém, segundo ela, acaba sendo
excludente.
O que diz a terceira versão da BNCC
Na segunda
versão da Base do ensino infantil, o campo "Escuta, fala, pensamento e
linguagem" tinha cinco objetivos de aprendizagem para as crianças pequenas
(de 4 a 5 anos). Na terceira versão, o novo campo, renomeado de "Oralidade
e escrita", tem nove objetivos de aprendizagem, quase todos ligados
diretamente a algum tipo de reconhecimento textual e escrita espontânea por
parte dos alunos.
Na Base do
ensino fundamental, a terceira versão trouxe diversos novos elementos e textos
reescritos. Alguns objetivos que eram do 3º ano na segunda versão foram
transportados para o 2º ano, como, por exemplo, "ler textos literários de
forma autônoma" e "formular hipóteses sobre o conteúdo de textos, com
base em títulos, legendas, imagens e pistas gráficas".
Veja abaixo
alguns dos elementos da versão da Base apresentada pelo MEC, do ensino infantil
e do 2º ano do fundamental, que se referem à alfabetização:
ENSINO
INFANTIL
Objetivos de aprendizagem do campo 'Oralidade e escrita':
·
0 a 18
meses (bebês): Ter contato com
diferentes gêneros textuais (poemas, fábulas, contos, receitas, quadrinhos,
anúncios etc.).
·
0 a 18
meses: Ter
contato com diferentes instrumentos e suportes de escrita.
·
19 meses a
3 anos (crianças bem pequenas): Ampliar o contato com diferentes gêneros textuais (parlendas, histórias
de aventura, tirinhas, cartazes de sala, cardápios, notícias etc.).
·
19 meses a
3 anos: Manusear
diferentes instrumentos e suportes de escrita para desenhar, traçar letras e
outros sinais gráficos.
·
4 e 5 anos
(crianças pequenas): Expressar
ideias, desejos e sentimentos sobre suas vivências, por meio da linguagem oral
e escrita (escrita espontânea), de fotos, desenhos e outras formas de
expressão.
·
4 e 5
anos: Inventar
brincadeiras cantadas, poemas e canções, criando rimas, aliterações e ritmos.
·
4 e 5
anos: Escolher e
folhear livros, procurando orientar-se por temas e ilustrações e tentando
identificar palavras conhecidas.
·
4 e 5
anos: Produzir suas
próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em situações com
função social significativa.
·
4 e 5
anos: Levantar
hipóteses sobre gêneros textuais veiculados em portadores conhecidos,
recorrendo a estratégias de observação gráfica e de leitura.
·
4 e 5
anos: Identificar
gêneros textuais mais frequentes, recorrendo a estratégias de configuração
gráfica do portador e do texto e ilustrações nas páginas.
·
4 e 5
anos: Levantar
hipóteses em relação à linguagem escrita, realizando registros de palavras e
textos, por meio de escrita espontânea.
2º ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL
Objetivos de aprendizagem de vários eixos de língua portuguesa:
·
Leitura: Localizar, em textos curtos, informações pontuais,
além de inferir, em textos curtos, informações implícitas de fácil
identificação.
·
Escrita: Escrever mensagens pessoais (em papel ou em
meios digitais), escrever pequenos relatos informativos, escrever cartazes
simples com texto argumentativo.
·
Escrita: Utilizar, ao produzir o texto, grafia correta
de palavras conhecidas ou com estruturas silábicas já dominadas, letras
maiúsculas em início de frases e em substantivos próprios, segmentação entre as
palavras, ponto final, ponto de interrogação e ponto de exclamação.
·
Escrita: Revisar, reescrever e editar texto.
·
Conhecimentos
linguísticos e gramaticais: Recitar o alfabeto na ordem das letras.
·
Conhecimentos
linguísticos e gramaticais: Escrever
palavras, frases, textos curtos nas formas imprensa e cursiva.
·
Conhecimentos
linguísticos e gramaticais: Escrever
as palavras corretamente, dividi-las corretamente em sílabas, conhecer
sinônimos, e usar sinais de pontuação.
·
Conhecimentos
linguísticos e gramaticais: Ler, de forma autônoma, textos literários, e expressar preferências por
gêneros, temas e autores.
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