Benedito Cirino dá aula de filosofia em Sorocaba.
'Canalizei toda a minha experiência para formar seres humanos', diz.
A trajetória de vida intensa de um professor e doutor em filosofia faz as aulas ficarem mais atrativas e emocionantes para estudantes de uma universidade de Sorocaba (SP), no interior de São Paulo. Ex-andarilho, Benedito Aparecido Cirino, de 51 anos, usa a própria história para contextualizar o conhecimento dos maiores pensadores da humanidade a fim de motivar os alunos e contar como abandonou as ruas e chegou às salas de aula.
Em entrevista ao G1, Benedito conta que as reações dos alunos são sempre diferentes, já que muitos não faziam ideia de que o professor que explica com clareza as citações mais famosas da humanidade chegou a ser morador de rua e até a comer lixo. "É sempre uma novidade. Faço questão de contar um pouco da minha história, pois acredito que eles podem aprender com a minha experiência de vida e acadêmica", diz.
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A saga de Benedito começou após a morte da mãe, aos 9 anos, quando morava em Campinas. “Aprendi a ler aos 7 anos e aquilo foi fantástico para mim, mas tive que parar de estudar aos 11 anos para ajudar meu pai como aprendiz em uma fábrica. Me diziam que pobre tinha que trabalhar e não estudar”, lembra.
Durante a passagem da adolescência para a vida adulta, Benedito acumulou diversos empregos para complementar a renda da família. Na época, a expectativa era de ser contratado por um escritório onde era auxiliar não aconteceu e ele passou a coletar materiais recicláveis.
Foi nesta época que uma conversa com um tio provocou uma reviravolta na sua vida pacata. Ao som da viola caipira, os dois fizeram uma reflexão sobre o que passavam enquanto olhavam as estrelas. "Ele disse assim: ‘Olhe as estrelas. Sabe o que eu acho? Esse monte de estrela mostra que a gente não é nada em relação ao tamanho do universo’. Até aquele momento eu não tinha parado para perceber o que aquilo significava e foi um choque ao comparar com a minha realidade. Tive uma espécie de surto”, lembra o professor que, a partir daquele momento, começou a conviver com um inimigo: ele mesmo.
Apesar de desorientado psicologicamente e em uma situação familiar precária, ele chegou a ser promovido no jornal onde trabalhava, mas pediu demissão em poucos meses. “Com o dinheiro que eu tinha comprei comida, peguei o que tinha e fui para o Mato Grosso com um amigo. Fiz isso porque dentro de mim havia um sentimento em que parecia que ia morrer rápido e minha vida não ia mudar nunca”, lembra.
Comida de oferenda
Depois de 3 meses vivendo no Mato Grosso, o dinheiro guardado e a comida acabaram. Sem emprego e longe da família, decidiu voltar para interior de São Paulo, mas passou por vários problemas ao embarcar no ônibus, com 19 anos. "Entrei sem dinheiro, pois pensei que iria cobrar apenas quando chegasse no destino, mas no meio do caminho, ele quebrou e o motorista pediu para todos pagarem. Eu não tinha nada no bolso e fui deixado em uma cidade apenas com a mochila nas costas”, relata Benedito, que só conseguiu pegar o transporte depois de pedir dinheiro para o prefeito da cidade e voltar para Campinas.
Enquanto tentava encontrar um local para se estabelecer, Benedito viajou por vários estados. "Não conseguia ficar em lugar nenhum e em Cuiabá conheci dois meninos que foram para Manaus comigo: um jovem e outro ainda era menor de idade. Sem dinheiro, comíamos restos de feira em sopas, comida de lixo e até de oferendas (frutas e pedaços de frango) na rua”, revela.
Em uma das tentativas de almoçar sem pagar, o professor conta que quase morreu em uma delas. Morando nas ruas com os dois companheiros, eles comiam em restaurantes e fugiam. No entanto, ele chegou a ser alcançado por um garçom e agredido com ajuda do dono e levado para um matagal. “Quando eles colocaram a arma na minha cabeça eu disse: ‘você pode me bater, mas não dói mais do que a fome que sinto há três dias sem comer’. Depois disso, eles me soltaram e percebi que eu não tinha saído de casa para viver aquilo”, relata.
‘Senhor Salvador’
Com a mochila nas costas, ele decidiu seguir viagem sem os dois colegas e pegou carona por quatro dias em cima de um caminhão atéBoa Vista (RR) enfrentando fome e frio. Ainda na estrada, ele conheceu um caminhoneiro que recorda se chamar “Salvador”, ou, como referia “senhor Salvador”, que, segundo ele, transportava caixões em toda a carroceria. “Ele me viu naquela situação com quase 20 anos e me deu uma baita bronca. Foi quando ele me deixou em outro posto e voltei para Campinas. Eu estava em casa”, comenta.
Junto com a família depois de uma longa jornada, Benedito voltou ao mesmo lugar de onde começou a viagem e trabalhou no mesmo jornal. Foi nesta época que ele encarou o ensino supletivo para dar continuidade à escola, mas foi o começo de um relacionamento com uma mulher que tinha amigos em universidades que o motivou a retornar aos estudos. “Comecei no fundamental e fiz o ensino médio”, lembra.
Após terminar o ensino médio, logo se matriculou no curso de filosofia, em Campinas, aos 25 anos. “Não entendia nada, foi como começar do zero, mas não desisti. Porém, terminei a faculdade, pedi demissão do jornal e tive meus primeiros alunos dando aula no ensino médio”, lembra.
Apesa das dificuldades, ele focou nas aulas e a venda de artesanato na rua. “O tempo em que passei naquela vida eu via pessoas fazendo objetos para vender e aquilo me atraia. Não era algo que eu queria fazer para sempre, mas a beleza das peças me motivou a fazer pequenos bonecos e máscaras para vender”, diz Benedito, que após terminar filosofia, fez o mestrado com bolsa de estudos.
Ingresso na universidade
Após palestras, ele foi convidado a se apresentar na Universidade de Sorocaba (Uniso), o que rendeu a contratação como professor e, posteriormente, a oportunidade do doutorado.
Hoje, ele procura refletir o que viveu e comemora ao ver que, após se formar, outros dois irmãos e a filha de 19 anos, estudante de biologia, também seguiram a vida acadêmica “Desde então, gosto de apresentar aos alunos o que aprendi da vida. Parece que toda aquela energia que não me deixava ficar em um lugar algum foi centralizada para eu ensinar e formar seres humanos melhores. Peço para que eles procurem o conhecimento cada vez mais”, finaliza.
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